Tsundoku — o nome japonês para o hábito de acumular futuros.

Tsundoku — o nome japonês para o hábito de acumular futuros.
Janko Ferlič - Unsplash

Minha relação com os livros começou em 1985. Meu primeiro livro, tirando as leituras obrigatórias da escola, foi Cem dias entre o Céu e o Mar, de Amyr Klink. A narrativa da travessia a remo em solitário do oceano Atlântico — da Namíbia até a Bahia. Eu me sentia lá, remando junto, cruzando o mar. Mas algo me chamou ainda mais atenção: o autor falava das leituras que o acompanharam, dos livros que inspiraram o projeto e das histórias de outros navegadores que ele trazia como referência. Outro livro de expedições: Paratii – Entre Dois Polos, e mais uma vez, estavam lá os relatos, as citações, os livros levados a bordo.

Aqueles relatos me inspiraram. Quis conhecer os mesmos autores, ler os mesmos livros. Queria fazer parte daquela viagem, não só com o corpo — mas com a imaginação e com as palavras. E comecei a buscar esses livros e outros tantos. Vieram Shackleton, Roald Amundsen, Aleixo Belov, André Homem de Mello, os Schurmann, Bernard Moitessier. Navegadores, aventureiros, exploradores. Todos me ajudando a construir minha própria travessia. Muitas destas histórias me ensinaram sobre como construir uma ideia e colocá-la em prática. O valor de estudar, planejar e executar, se desapegar dos resultados, trabalhar intensamente nos processos.

Assim nasceu o meu gosto por livros. E posso dizer que minha biblioteca começou ali, por volta de 1987, 1988. Comecei a acumular livros e a sentir prazer genuíno em lê-los. Minhas leituras foram se expandindo. Dos mares, parti para as expedições no Everest e as montanhas nepalesas: Annapurna, K2, Lhotse. Depois vieram os livros sobre auto conhecimento, espiritualidade, filosofia, psicologia. Li Joseph Campbell, Jung, A Busca do Graal, me surpreendi com Einstein, Sun Tzu, Gilles Lipovetsky. Fui ampliando meus horizontes através das páginas. Mais tarde, mergulhei no universo dos negócios, empreendedorismo, economia, e também nas biografias que me inspiram. Hoje, minha biblioteca passa dos 800 volumes. Ela cresceu comigo. Cada livro tem uma história. Alguns foram lidos, relidos, sublinhados. Outros, continuam ali. Intactos. Silenciosos. Esperando.

Dia 23 de abril é celebrado o Dia Mundial do Livro. A data, instituída pela Unesco, homenageia a leitura como um direito simbólico e universal. Um lembrete do quanto os livros nos acompanham em tantas fases da vida: como referências, inspiração e direção. Celebrar essa data é, para mim, como revisitar o percurso de quem sou — e de quem fui me tornando a cada leitura. É lembrar que cada livro carrega um gesto de desejo: de aprender, de sentir, de ampliar os limites da própria experiência.

E também é uma oportunidade para reconhecer um fenômeno curioso, que faz parte da vida de muitos leitores — inclusive da minha. Existe uma palavra japonesa que define, com precisão quase poética, um hábito comum a muitos de nós: Tsundoku. Ela descreve o ato de acumular livros sem lê-los — ou, pelo menos, não imediatamente. As pilhas crescem, a estante enche, o tempo passa, e os livros permanecem ali, esperando o seu momento.

Tsundoku é uma expressão japonesa. Vem de Tsunde ( empilhar ), oku ( deixar solto ) e doku ( ler ). Ter a nação japonesa por trás de sua compulsão também faz com que pareça bem pensada, charmosa, fundamentada na tradição, talvez até com sua própria cerimônia intrincada com a qual Haruki Murakami  ( escritor japonês ) teve algo a ver. De qualquer forma, "Tsundoku" soa melhor do que "acumulação". É o tipo de resposta que desarma o olhar crítico de quem vê sua estante abarrotada: “Compra compulsiva? Não. Os japoneses até têm uma palavra pra isso.”

Talvez comprar livros seja só isso: uma forma silenciosa de acreditar que ainda haverá tempo. Uma idealização, claro.

Diferente do consumismo banal, o tsundoku tem algo de ritual. Não é apenas sobre comprar — é sobre desejar. É como se cada livro trouxesse a promessa de um futuro encontro. Quando o desejo de ler é maior do que o tempo. Um convite à transformação que ainda não teve espaço para acontecer. Cada volume que ainda não li, carrega uma possibilidade futura. Nassim Nicolas Taleb, no livro A Lógica do Cisne Negro, sustenta que uma biblioteca pessoal deve conter tantos livros não lidos quanto seus meios financeiros permitirem: “quanto mais você sabe, maiores devem ser suas fileiras de livros não lidos”. Segundo ele, essa é a sua “antibiblioteca”.

Mas afinal, o que tem nos impedido de ler mais? Com frequência ouço pessoas dizendo que não conseguem focar — começam um livro, mas não avançam, perdem o fio. E a resposta, para mim, é cada vez mais evidente: vivemos num tempo de distrações constantes, onde as telas nos puxam o tempo todo para longe do foco. Cada notificação interrompe. Cada rolagem fragmenta. Estamos acostumados ao estímulo rápido, ao conteúdo descartável, ao pensamento apressado. A leitura pede o oposto. Ela exige mergulho, pausa, permanência. Ler, hoje, é quase um gesto de resistência — como pedalar contra o vento. E justamente por isso, que a leitura segue sendo um dos caminhos mais profundos de transformação. Cada livro fechado na estante ainda carrega uma semente.
O tsundoku pode ser menos sobre culpa e mais sobre possibilidade. Um campo fértil de futuros ainda não vividos. Talvez o que nos falte não seja disciplina, mas tempo interno. Menos tela. Mais silêncio. Menos urgência. Mais disponibilidade. Quando abrimos um livro, não abrimos apenas uma história. Abrimos uma parte de nós que estava adormecida.

Salvo por algumas edições raras ou antigas, hoje leio bastante pelo Kindle — que, aliás, resisti por muito tempo em adotar ( um ótimo presente da minha mulher ). Mas a experiência me surpreendeu. Recomendo. É prático, leve, ideal para viagens. E o que é mais legal: as anotações e marcações vão direto para o e-mail em formato PDF, o que facilita imensamente meus estudos e releituras. Ainda assim, minha biblioteca física continua crescendo. A obsessão só ganhou novos contornos: agora, compro o livro no Kindle para ler — e o físico, para ter. Porque livros merecem um lugar na estante.

Minha mais nova aquisição é um livro que venho procurando desde 2004:
“O Último Lugar da Terra”. Depois de 21 anos de busca por sebos e livrarias, finalmente o encontrei. A obra narra a corrida de 1912 entre Amundsen e Scott rumo ao Polo Sul — e revela como o norueguês chegou lá primeiro, com menos recursos e mais estratégia. Mais do que uma aventura épica, o livro desvenda os bastidores das duas expedições e mostra como, às vezes, o heroísmo esconde decisões mal planejadas e erros fatais.

Cada livro que compramos é uma promessa silenciosa de futuro. Vale a pena.
Nem que seja apenas pela promessa de que estaremos vivos para lê-los.

 

 

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