O que o Talks me ensinou sobre vínculo, escuta e cuidado.

O que o Talks me ensinou sobre vínculo, escuta e cuidado.

Em janeiro de 2020, entrei com minha mulher em um restaurante que costumávamos frequentar. Logo na entrada, ela reencontra uma amiga: a chef de cozinha Thaty Adjiman. Depois das apresentações, Dany lança uma frase aparentemente despretensiosa, mas que acabou sendo um ponto de virada: “Vocês deviam fazer algo juntos.” Thaty e eu trocamos olhares com surpresa e certa hesitação. O que, afinal, um psicanalista e uma chef de cozinha poderiam criar em parceria?

Na época, eu vinha de uma experiência rica e intensa com Processos Circulares no mercado financeiro. Essa metodologia, criada pela americana Kay Pranis e inspirada nas tradições de povos originários da América do Norte, propõe uma forma de diálogo profundo e respeitoso. O objetivo é promover reconhecimento mútuo, construir consenso e favorecer o surgimento de um senso de comunidade. Em um círculo, todos têm voz — e todos escutam. A fala é mediada por um objeto simbólico que circula entre os participantes. Quem segura o objeto pode falar; quem não está com ele, pode escutar. A base é a escuta qualificada e o respeito mútuo.

A Thaty já conduzia encontros em seu espaço. A Casinha Cozinha é um lugar acolhedor e cheio de afeto, onde ela oferecia jantares e oficinas gastronômicas. E se criássemos uma experiência em que as pessoas pudessem se reunir para comer, beber e, sobretudo, pensar e sentir juntas?

Foi a Dany quem primeiro imaginou esse modelo. A partir da sensibilidade dela, nasceu o que inicialmente chamamos de Eat, Talk and Think. A proposta era simples e potente: escolher um texto ou conto com força reflexiva, compartilhar a leitura com o grupo e abrir uma roda de conversa usando uma colher de pau como objeto de fala. Um encontro para provocar, escutar e conectar. No cardápio, além de boa comida e vinho, havia sempre um tema que tocasse, atravessasse, provocasse reflexão.

O primeiro encontro estava marcado para 16 de março de 2020. Mas a pandemia estourou no dia 13. Tivemos que adiar. Foram nove meses até que pudéssemos, de fato, fazer a primeira edição. E desde então, não paramos mais de promover o Talks, como viria carinhosamente ser chamado.

Hoje, olhando para trás, já realizamos 60 edições e tivemos a presença de mais de 500 participantes únicos. Pessoas que vieram uma vez e não voltaram. Pessoas que voltam sempre. Pessoas que vieram acompanhadas e também aquelas que, corajosamente, chegaram sozinhas. Mas todas, de alguma forma, foram tocadas. Amigos, desconhecidos, pessoas de diferentes áreas, gerações e histórias. Porque o Talks não é apenas um encontro. É uma experiência de escuta em tempos de ruído.

Foi a partir dessa vivência que compreendi, de forma viva, o que a pesquisadora Kasley Killam vem chamando de Saúde Social. Na sua palestra no SXSW deste ano e no livro que lançou recentemente, Killam afirma que, além da saúde física e da saúde mental, precisamos reconhecer um terceiro eixo fundamental para o bem-estar: a saúde que nasce das nossas relações.

Saúde Social é a capacidade de construir e manter vínculos significativos ao longo da vida. E não se trata apenas de estar rodeado de gente, mas de pertencer, ser visto, poder confiar, se sentir em casa. Pessoas com fortes conexões sociais vivem mais, têm menos doenças cardiovasculares, maior imunidade e menor risco de depressão. Por outro lado, a ausência de laços afetuosos está sendo tratada como epidemia global, com países criando ministérios da solidão e gestores públicos declarando o isolamento uma emergência de saúde pública. Para enfrentar essa realidade, Killam propõe uma abordagem proativa, baseada em presença e intencionalidade nas relações. Conexões cotidianas — inclusive com desconhecidos — somadas ao fortalecimento dos vínculos íntimos e à qualidade das interações, podem transformar nossa saúde por inteiro.

E aí, entra um ponto crucial: o cuidado emocional não depende exclusivamente da terapia tradicional — mas ela continua sendo fundamental. A terapia individual oferece um espaço insubstituível de escuta especializada, onde a história única do sujeito pode ser acolhida em profundidade, com técnica e sigilo. É o lugar onde se pode elaborar dores íntimas, trabalhar traumas, reconhecer padrões e acessar camadas que, muitas vezes, só emergem no encontro a dois. No entanto, isso não significa que o cuidado psíquico se encerre ali. A escuta que acontece em uma roda, a conexão que nasce de uma conversa despretensiosa, o acolhimento silencioso de um grupo — tudo isso também cura. Estar em grupo pode ter, em muitos momentos, uma potência complementar à clínica. E para muita gente, o que falta não é necessariamente mais um diagnóstico, mas sim um lugar de escuta e pertencimento. A saúde emocional é feita de múltiplas camadas — e precisamos de todos os espaços possíveis para sustentar o que sentimos.

Essa perspectiva nos convida a revisitarmos, também, o conceito de “Third Place” (ou “Terceiro Lugar”), formulado por Ray Oldenburg, em seu livro “The Great Good Place” (1991). Segundo ele, nossas vidas se organizam em torno de três espaços: a casa (primeiro lugar), o trabalho (segundo lugar) e o terceiro — que é o espaço onde a vida social floresce, onde nos sentimos pertencentes sem precisar performar, onde podemos simplesmente ser. Esses espaços são neutros, acolhedores, acessíveis e livres de hierarquias. Em cafés, clubes, livrarias ou espaços culturais, a atividade principal é o encontro. A conversa. O tempo partilhado. Esses lugares cumprem um papel social e psíquico fundamental: eles mantêm a comunidade viva. E mais do que isso, eles oferecem cuidado emocional coletivo. Hoje, posso afirmar com tranquilidade: o Talks é um terceiro lugar. E é o terceiro lugar de muito gente que vem sempre. Onde a palavra tem tempo e cuidado. Onde a dor pode aparecer, mas não assusta. Onde há também silêncio, presença e vínculos.

Na era hipermoderna, marcada pela velocidade, pelo ruído e pelo isolamento digital, criar esses espaços é um ato terapêutico e amoroso. A pandemia nos mostrou que o corpo adoece, mas também que o vínculo salva. E se queremos falar de saúde integral, precisamos incluir esse cuidado com as relações na mesma medida em que falamos de alimentação, atividade física, sono ou terapia.

Por isso, o que vivemos nos encontros do Talks não é apenas uma experiência interessante. É um ato de saúde social. É resistência ao colapso do laço. É um respiro no meio da pressa.

E este é também o início de uma nova forma de cuidar: em breve, novos terceiros lugares surgirão, encontros em grupo com a mesma essência. Porque a escuta compartilhada é uma tecnologia afetiva poderosa. E porque o mundo anda pedindo mais laço, mais tempo, mais presença.

E, no fundo, mais humanidade.