O medo silencioso da obsolescência.

O medo silencioso da obsolescência.
Photo by Ravi Patel / Unsplash

Inovar não é mais escolha, é condição de sobrevivência. A velocidade das transformações tecnológicas, sobretudo com a inteligência artificial, trouxe à tona um novo tipo de angústia psíquica: o Fear of Becoming Obsolete (FOBO), o medo de se tornar obsoleto. Não se trata apenas de perder o emprego ou ser substituído por máquinas. O que está em jogo é mais profundo: a sensação de deixar de ter valor, de não ser mais necessário, de perder lugar no mundo.

Esse medo atravessa todas as dimensões da vida. Está no corpo que envelhece e já não responde como antes. Está nas relações, quando sentimos que não somos mais fonte de desejo, inspiração ou referência. Está na família, quando os papéis mudam e descobrimos que já não somos indispensáveis. Está nos círculos sociais, quando o espaço de fala diminui e a relevância parece escapar por entre os dedos. Ser esquecido pode doer tanto quanto ser substituído.

Tudo isso se desenrola em um cenário de policrise econômica, política e ambiental. O horizonte parece instável, mas é justamente nesse terreno fraturado que novas possibilidades emergem. Estamos, talvez, na era de maior potencial criativo e tecnológico da história. Mas nada disso importa se não formos capazes de construir futuros positivos. E futuros não se herdam: constroem-se, todos os dias.

Einstein já havia apontado a direção: “a imaginação é mais importante que o conhecimento”

Chegar a um lugar novo exige mudar as rotas que nos trouxeram até aqui. Não apenas no trabalho ou nas organizações, mas também nos modos de amar, de cuidar, de conviver, de educar, de se relacionar com o corpo e com o tempo. Nenhuma dessas dimensões precisa permanecer intocada. Nada obriga a manter como as coisas estão. O risco maior não é errar o caminho, mas se recusar a caminhar. Parar no tempo é o primeiro passo para a obsolescência, seja ela profissional, social ou afetiva.

Por isso, precisamos de planos concretos, individuais e coletivos, para seguir relevantes e vivos no trabalho e na vida. É o que Kevin Kelly, editor e escritor da revista Wired, chama de protopia: um futuro construído por melhorias e progressos constantes, um meio-termo entre a utopia (sociedade perfeita e idealizada) e a distopia (futuro negativo e destrutivo).

Se o FOMO (Fear of Missing Out), o medo de ficar de fora, marcou uma geração ansiosa por não perder nada, o FOBO é a angústia do nosso tempo: o medo de se tornar irrelevante. Não se trata apenas de ser substituído por uma máquina no trabalho, mas de perder o fio da própria relevância no mundo. O termo ganhou força justamente porque traduz algo que já sentimos na pele. Uma pesquisa da Gallup mostrou que 22% dos trabalhadores nos EUA temem que seus empregos se tornem obsoletos, um salto de sete pontos percentuais em apenas dois anos. O Fórum Econômico Mundial projeta que quase metade das habilidades atuais será impactada nos próximos cinco anos. A sensação é de que tudo está mudando mais rápido do que conseguimos acompanhar.

Durante o Fórum Econômico Mundial em Davos, o FOBO foi citado como uma das grandes preocupações da era da inteligência artificial. A resposta dos especialistas foi clara: precisamos de requalificação constante, de aprender e reaprender sem cessar. Mas o problema não é só técnico. Há também um ponto de identidade. O medo de obsolescência toca a pergunta mais íntima: “Eu ainda sou necessário?”

É aqui que entra um antídoto poderoso: o propósito. Não apenas aquele que se expressa em dedicar tempo aos outros ou em realizar um trabalho relevante para a sociedade, mas também o propósito de permanecer significativo em seu próprio universo, no ambiente mais íntimo da vida. Pessoas que conectam sua atividade profissional e seus papéis pessoais a algo maior do que a função ou o salário tendem a experimentar menos ansiedade. Afinal, o valor percebido da vida não depende apenas da tecnologia, mas da relevância humana que são capazes de entregar.

Exemplos práticos ajudam a ilustrar: um terapeuta que atualiza suas ferramentas digitais, mas continua cuidando de pessoas em sofrimento; um educador que utiliza inteligência artificial, mas mantém viva a chama de ensinar; um jornalista que se reinventa diante das novas tecnologias, mas preserva a essência de investigar com olhar humano. Há também os avós, presentes na educação dos netos, a família que se reúne para refletir sobre a evolução de seus membros. Todos esses modelos mostram que, quando o eixo é o impacto humano, a obsolescência perde parte de sua força.

FOBO sob a perspectiva Psicanalítica: o medo de deixar de ser desejável

Na psicanálise, desde Freud e Lacan a autores contemporâneos, o temor de se tornar obsoleto não se reduz a uma questão funcional do mercado de trabalho. Ele se manifesta como atualização de angústias arcaicas ligadas à castração, à exclusão e à perda de valor narcísico funcional. O sujeito não teme apenas a demissão ou a perda de renda; ele teme desaparecer como objeto de desejo. Inserido na lógica do desempenho descrita pelo filósofo Byung-Chul Han, o indivíduo passa a operar como uma mercadoria em constante exibição: precisa se reinventar, se atualizar, se vender. O FOBO, nesse cenário, não é apenas medo da inutilidade prática, mas uma ameaça de aniquilamento simbólico: “Se não sou mais útil, não sou mais desejado. Se não sou mais desejado, não existo.” Esse enunciado sintetiza a ferida narcísica contemporânea. Em culturas como a nossa, em que o valor pessoal está atrelado quase exclusivamente à produtividade e ao reconhecimento social, a obsolescência equivale a uma forma de morte subjetiva. A tecnologia encarna hoje um novo ideal do Eu. Como espelho implacável, expõe a limitação do saber, da potência e da juventude. Cada atualização, cada algoritmo que ultrapassa o sujeito, lembra-lhe sua condição de ser finito, castrado, substituível. A obsolescência, nesse sentido, não ameaça apenas o salário, mas a consistência do Eu e seu narcisismo funcional.

Eu mesmo já me vi prisioneiro dessa sensação. Em alguns momentos, ao perceber uma novidade tecnológica que não acompanhei ou uma linguagem que ainda não domino, senti uma espécie de vazio por dentro, como se fosse menos relevante, quase invisível. É um mal-estar difícil de nomear, mas fácil de reconhecer: uma mistura de inadequação, pressa e medo de desaparecer. Foi preciso atravessar esse desconforto e me perguntar o que, de fato, me move, para não confundir o meu valor com a velocidade das atualizações do mundo. A psicanálise, nesse ponto, não me deu respostas prontas, mas abriu espaço para escutar esse mal-estar em profundidade. O que encontrei foi uma saída que não depende de estar sempre à frente, mas de sustentar o desejo que me atravessa. Não é sobre ser o mais moderno ou o mais eficiente, mas sobre manter viva a chama que dá sentido à existência, mesmo em um mundo em que tudo, pessoas, funções e algoritmos, estão destinados a passar.

FOBO na interpretação da TCC: entre a distorção e a evitação

Na perspectiva da Terapia Cognitivo Comportamental, o FOBO pode ser visto como a ativação de crenças centrais disfuncionais, esquemas de inadequação e estratégias de evitação experiencial diante da pressão por atualização constante. É como se, a cada novidade tecnológica, fossem acionadas mensagens internas cristalizadas: “Se eu não for útil, serei descartado”, “Sou menos inteligente do que os outros”, “Não consigo acompanhar as mudanças”, “Meu valor depende do meu desempenho”. Essas crenças costumam ter raízes em experiências precoces de comparação, exigência excessiva ou validação restrita à performance, seja na infância, na vida acadêmica ou no início da carreira.

Quando acionadas, essas crenças se expressam através de distorções cognitivas típicas: a catastrofização que projeta um futuro no qual a IA inevitavelmente tomará o lugar do sujeito; a leitura mental que o convence de que todos ao redor estão mais preparados; o filtro negativo que só permite enxergar as próprias limitações; e a personalização que transforma qualquer mudança estrutural em falha pessoal. Esse conjunto de distorções mantém vivo o ciclo de evitação e ruminação, produzindo paralisia e ampliando o sofrimento psíquico.

Em um nível mais profundo, o FOBO na TCC toca diretamente em esquemas centrais de fracasso, desvalorização e vulnerabilidade. O fracasso se expressa como um sentimento persistente de incompetência; a desvalorização, como a percepção de que só há valor quando se é útil ou admirado; e a vulnerabilidade, como a crença de que um desastre iminente, seja a irrelevância, a demissão ou a substituição por máquinas, está sempre à espreita. Nesse cenário, o medo de se tornar obsoleto não é apenas um reflexo das transformações externas, mas a atualização de um modo de pensar enraizado, que transforma o avanço da tecnologia em prova de inadequação pessoal.

Como enfrentar o FOBO na prática

Se na psicanálise o caminho é reencontrar o desejo para além da utilidade, na TCC a proposta é construir estratégias concretas para lidar com as crenças disfuncionais e a evitação que alimentam o FOBO. Uma das primeiras ferramentas é a reestruturação cognitiva, que convida o paciente a questionar a evidência real da obsolescência iminente, a criar perspectivas alternativas e a identificar pensamentos automáticos como “sou menos inteligente” ou “serei descartado”, substituindo-os por versões mais funcionais. Esse trabalho se fortalece quando acompanhado de exposição gradual ao aprendizado: em vez de evitar novas tecnologias, o sujeito é incentivado a se aproximar delas com apoio, seja por meio de cursos breves, tutoriais ou até mentorias reversas, em que os mais jovens ensinam os mais experientes.

As técnicas de aceitação e mindfulness, características da TCC de terceira onda, ampliam essa perspectiva, ajudando o paciente a acolher a impermanência das funções e das mudanças profissionais como parte natural da vida. Ao mesmo tempo, cultivam uma identidade mais ampla do que o “eu profissional eficiente”, reduzindo a dependência do desempenho como única fonte de valor. A definição de valores e metas também se mostra fundamental: ao redirecionar a atenção para o que tem significado intrínseco, é possível construir trajetórias de desenvolvimento que geram autonomia, satisfação e resiliência, independentemente das comparações com o mercado.

Na minha própria experiência, percebo que a evitação é uma tentação constante. Há momentos em que a velocidade das mudanças parece maior do que minha capacidade de acompanhá-las, e o impulso natural é recuar. Mas aproximar-se gradualmente do novo, escolhendo aprender aos poucos e reconhecer os próprios limites, se mostra mais eficaz. Ao compartilhar esse processo em vez de escondê-lo, descubro que não perco autoridade, mas crio conexões e movimento. O FOBO se enfraquece quando deixamos de buscar perfeição e nos autorizamos a existir também no inacabado.

O FOBO é um sintoma hipermoderno e, como todo sintoma, ele não deve ser apenas eliminado, mas escutado. Nem toda inovação precisa ser acompanhada, nem todo medo de ficar para trás é irracional. O problema surge quando a identidade do sujeito passa a ser refém da função ou do olhar do outro. Ao reconectar-se com o que realmente o move, para além do ideal de utilidade e do espelho social, abre-se espaço para uma experiência de si mais ampla, viva e livre. O antídoto para o medo de se tornar obsoleto talvez não esteja em correr mais rápido, mas em lembrar que o valor de existir vai além do que se é capaz de entregar.

Meu modelo de trabalho é o de uma clínica integrativa, que reconhece que o sofrimento diante do FOBO não é apenas racional ou irracional, mas estrutural e vivencial. A Psicanálise escuta o que se perde simbolicamente quando se teme a obsolescência, enquanto a TCC oferece ferramentas concretas para lidar com as distorções cognitivas e padrões de evitação que alimentam esse medo. Essa integração acolhe a profundidade do sujeito e, ao mesmo tempo, cria um repertório de ação diante de um mundo em transformação.

Essa integração pode acontecer de diferentes formas. A TCC propõe questionar crenças limitantes, enfrentar pensamentos automáticos e experimentar gradualmente novas aprendizagens. A Psicanálise convida a investigar como o sujeito se construiu em torno do olhar do outro e o que significa, para ele, ser deixado de lado ou substituído. Em conjunto, essas intervenções ajudam a transformar a angústia em elaboração e a paralisia em movimento.

Mais do que acompanhar cada novidade, o desafio é reencontrar o desejo. Quando o sujeito se abre para uma identidade mais fluida e múltipla, capaz de sustentar tanto valores pessoais quanto relações de desejo singulares, o FOBO perde sua força paralisante. A obsolescência, inevitável para funções e tecnologias, deixa de significar a morte do valor pessoal. No lugar do medo, surge a possibilidade de um sentido renovado: existir não como peça descartável, mas como alguém que cria, escolhe e se reinventa em diálogo com o tempo.

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