O Eu que sente vs. o Eu que posta: A nova epidemia psíquica.

O Eu que sente vs. o Eu que posta: A nova epidemia psíquica.
Photo by Михаил Секацкий / Unsplash

A presença digital deixou de ser apenas uma forma de comunicação para se tornar um território onde muitos depositam expectativas de valor, pertencimento e reconhecimento. No espaço das redes, o sujeito aprende a se mostrar antes mesmo de se escutar. Surge, então, uma cisão que já não é apenas um descompasso, mas uma divisão constitutiva: o eu que sente e o eu que posta.

O digital intensifica mecanismos culturais e psíquicos antigos. A psicanálise sempre observou a coexistência entre um self grandioso, que busca admiração, e um self inferiorizado, marcado pela insuficiência. As redes oferecem um palco onde o primeiro pode brilhar sem fricção e o segundo pode ser silenciado sem esforço. A imagem escolhida substitui a vivência real, a narrativa pública se torna mais consistente do que a experiência íntima, e o sujeito começa a se reconhecer mais naquilo que publica do que naquilo que vive.

Essa dinâmica produz uma economia afetiva particular. Quando a vida real não fornece matéria suficiente para uma narrativa impactante, muitos recorrem a conteúdos aleatórios apenas para manter o ciclo de visibilidade que alivia a ansiedade da irrelevância. Não se trata de comunicação, mas de autorregulação emocional. Cada curtida funciona como uma microdose de pertencimento. Cada atualização cria a sensação efêmera de continuidade. O vício não está no conteúdo, mas no alívio que ele produz.

O fenômeno do TBT, sigla para Throwback Thursday, exemplifica bem essa lógica. O que começou como um gesto de nostalgia transformou-se em um ritual de manutenção identitária. Ao revisitar imagens antigas e publicá-las como se fossem janelas para uma versão mais vibrante de si, o sujeito não está apenas compartilhando lembranças, mas preservando um self idealizado, congelado no tempo e protegido do desgaste da vida real. Cada curtida reafirma esse eu de antes, muitas vezes mais belo, mais desejado e mais potente do que o eu atual. A memória deixa de ser elaboração interna e se converte em artefato exibido para confirmar um pertencimento imaginário. Não é nostalgia, mas conservação do self grandioso, uma tentativa de garantir, pelo olhar do outro, que aquilo que já foi ainda merece admiração.

Nesse mesmo movimento ganha força outro fato contemporâneo: a busca por diagnósticos simplificados nas redes sociais. Em vez de acolher a angústia e procurar elaboração, o sujeito desloca sua inquietação para vídeos curtos, listas de sintomas e influenciadores que oferecem respostas absolutas. O que chega é uma mistura de alarmismo, pseudo-ciência e experiências anônimas que se apresentam como verdade universal. Essa avalanche de informações rasas não esclarece, não acalma, só confunde e intensifica a dor. Ao tentar nomear seu sofrimento com fragmentos desconexos, o sujeito se afasta da possibilidade de um diagnóstico sério e de um cuidado real, substituindo o encontro clínico por um feed caótico, alimentado pelo algorítimo, que amplia a ansiedade em vez de tratá-la.

A clínica contemporânea testemunha tudo isso com intensidade crescente. Pacientes descrevem a sensação de existir mais nas redes do que nas próprias vidas. Relatam a desconexão entre a vitalidade aparente da persona digital e o esvaziamento subjetivo que surge quando estão sozinhos. E aqui se revela um elemento central da experiência moderna: a comparação como forma de sofrimento.

Antes mesmo da explosão da cultura dos influenciadores já existiam sinais de transformação subjetiva. Em 2015, o jornal The Guardian analisou a ascensão do narcisismo nas redes justamente quando essas plataformas se consolidavam como fenômeno sociocultural. A lógica do falar de si, do corpo, dos treinos, da disciplina e da performance inaugurava uma estética do eu voltada para a administração permanente da própria imagem. As redes tornaram-se o palco ideal para normalizar o narcisismo como estilo de vida, entendido não como patologia, mas como uma prática cultural amplamente legitimada.

Hoje, muitos passam a medir a própria vida a partir desses avatares editados. A comparação produz uma frustração contínua porque ninguém alcança a vida que observa; deseja apenas a vida que se imagina. É uma comparação estruturalmente injusta: a vida vivida confrontada com a vida editada. E, em um desdobramento ainda mais preocupante, muitos ampliam o próprio endividamento financeiro apenas para sustentar a imagem que querem projetar, sacrificando o real para manter vivo o ideal.

Desse ponto emerge um fenômeno ainda mais delicado: quando o narcisismo do adulto se estende à figura do filho. A campanha irlandesa “Pause Before You Post”, criada para combater o Sharenting, ilumina esse ponto sensível. Pais movidos por afeto, ansiedade e por uma sutil demanda narcísica de confirmar publicamente o bom filho e o bom lugar que ocupam como pais, acabam expondo suas crianças a riscos reais. Publicam-se, em média, 63 fotos por mês, e apenas 20 imagens bastam para gerar um deepfake convincente. Metade das fotos presentes em fóruns criminosos teve origem nos perfis das próprias famílias. Psíquicamente, essa exposição precoce introduz a criança na lógica do espetáculo antes mesmo que ela tenha um eu disponível para consentir. Informações aparentemente inofensivas como nome, uniforme, rotina e amigos formam, quando reunidas, um dossiê involuntário. A imagem do filho se torna extensão do narcisismo parental e a fronteira entre cuidado e exibição se dissolve, transformando orgulho em vulnerabilidade.

O digital desloca o eixo do desejo. Deixa-se de desejar a partir da própria história para desejar a partir do que se vê. O desejo deixa de ser expressão e se torna imitação.


A Terapia Cognitivo-Comportamental ajuda a identificar as crenças que sustentam essa lógica. A ideia de que a vida dos outros é melhor opera como lente distorcida que altera a percepção da realidade. O filtro negativo seleciona apenas o que confirma a inadequação. A leitura mental atribui superioridade aos outros sem qualquer evidência. A distorção cognitiva transforma qualquer falha pessoal em sinal definitivo de fracasso.

A Psicanálise, por sua vez, ilumina por que essa comparação dói tanto. A vida dos influenciadores funciona como uma figuração moderna do Ideal do Eu. O sujeito não se compara a pessoas reais, mas a personagens meticulosamente compostos, reativando feridas narcísicas antigas: a sensação de nunca ser suficiente, o medo de não ser desejado, a angústia de não ocupar lugar no desejo do outro.

No consultório, a integração entre Psicanálise e TCC torna-se fundamental. De um lado, escuto o que se perde simbolicamente quando o sujeito se curva aos modelos imaginários de felicidade. De outro, trabalho as crenças, pensamentos automáticos e comportamentos evitativos que perpetuam esse ciclo. O objetivo é reconstruir a possibilidade de existir sem depender exclusivamente do olhar externo para confirmar a própria consistência.

Ao final, a cisão entre o que se sente e o que se posta revela algo mais profundo: o abandono lento e contínuo da vida real. A experiência direta, com sua textura imperfeita e sua ausência de espetáculo, vai sendo substituída pela vida performada, pronta para publicação. O risco é a obsolescência da própria experiência humana.

A busca contemporânea por saúde mental começa aqui. Resgatar a vida que pode ser vivida e não apenas exibida. Recuperar a capacidade de sentir antes de registrar. Permitir-se ser anônimo e silencioso, ter uma vida normal sem convertê-la em narrativa. O sujeito reencontra sentido quando volta a experimentar o real em sua densidade própria, sem compará-lo a versões editadas e sem exigir que cada instante seja memorável.

A saúde mental, nesse cenário, não nasce da performance, mas da presença. E o caminho mais urgente não é desconectar-se das redes, mas reconectar-se consigo. Nada substitui a vitalidade que surge quando o sujeito decide viver aquilo que sente em vez de apenas postar aquilo que imagina ser.

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