Fukase, Yōko e a estética da Neurose Obsessiva.

Esta não é uma história de amor. É o desdobramento de uma dinâmica compulsiva, atravessada por obsessões, fragmentações da identidade e perdas.
Masahisa Fukase nasceu em fevereiro de 1934, na cidade de Bifuka, no Japão. Foi uma figura pioneira no mundo da fotografia. Seu trabalho é conhecido por sua profundidade emocional evocativa e deixou uma marca indelével no campo, tanto no Japão quanto internacionalmente. Sua família administrava um estúdio de fotografia e a exposição precoce a esse ambiente artístico influenciou, sem dúvida, sua futura carreira. Formou-se na Faculdade de Artes da Universidade Nihon em 1956. Após a graduação, Fukase começou a trabalhar como fotógrafo comercial, mas seus interesses logo se voltaram para formas mais pessoais e expressivas de arte fotográfica.
Seus primeiros trabalhos eram essencialmente documentais, capturando cenas da vida cotidiana no Japão pós-guerra. No entanto, seu estilo evoluiu significativamente ao longo dos anos. Ele passou a explorar temas mais abstratos e conceituais. Sua abordagem tornou-se profundamente pessoal e, muitas vezes, introspectiva, reflexo direto de seus estados emocionais e experiências subjetivas.
Fukase casou-se pela primeira vez em 1964 e fez de sua esposa, Yōko Wanibe, uma verdadeira musa. As fotos que fez dela compõem uma das séries mais intensas e emocionais da fotografia japonesa contemporânea. A série, conhecida como Yōko, foi realizada principalmente durante os anos 1970, enquanto ainda estavam casados. Fukase a fotografava obsessivamente, transformando o relacionamento e o cotidiano deles em material artístico de enorme carga simbólica e afetiva. Todos os dias, ele a fotografava da janela, enquanto ela saía para trabalhar. Mas, sem perceber, aquilo que começou como um gesto carinhoso e singelo foi se transformando em outra coisa. Nas primeiras fotos, vemos descontração, cumplicidade, alegria, mas com o passar do tempo, começam a surgir outros sinais: distanciamento, irritação, ansiedade, talvez terror. Uma espécie de angústia muda.
Estamos falando de uma pessoa completamente obcecada por fotografia. Yōko dizia que ele a enxergava apenas através da câmera, como algo a ser capturado, e que aqueles retratos, na verdade, diziam mais sobre ele do que sobre ela.
Em 1976, eles se separam e o fotógrafo entra em ruína psíquica. Para lidar com isso, ele cria uma nova obsessão fotográfica. Fukase deixa Tóquio e, em suas viagens, começa a reparar nos corvos que apareciam nas estações de trem. Esses pássaros passam a representar sua confusão interior: silhuetas escuras, sombras introspectivas que dançam uma coreografia desesperada. Cada imagem parece ser um manifesto sobre perda e desespero.
Sua carreira dá uma guinada significativa com a publicação do livro Karasu (Corvos). Essa série de fotografias, retratando corvos em diversos cenários, é considerada sua obra-prima. Os corvos, simbolizando tristeza e perda, são uma expressão direta de seus sentimentos após o fim do casamento com Yōko. As imagens sombrias e inquietantes capturam a essência da solidão e do vazio, ressoando profundamente com os espectadores. Karasu é, sem dúvida, a obra mais célebre de Fukase e solidificou seu lugar na história da fotografia.
O projeto teve início logo após a separação e se estendeu por uma década. Os corvos, em suas imagens, não são meros sujeitos; são metáforas viscerais de seu estado emocional turbulento. O uso do preto e branco em alto contraste apenas intensifica a atmosfera melancólica da série.
Neurose obsessiva
Para quem não está familiarizado com o conceito, vale uma breve pausa: afinal, o que é a neurose obsessiva? Não me refiro aqui à obsessão cotidiana, aquela ligada a manias, organização ou pensamentos insistentes que todos experimentamos em alguma medida. Falo da estrutura clínica obsessiva, tal como pensada por Freud e aprofundada por Lacan. A neurose obsessiva é marcada por uma ambivalência intensa em relação ao objeto de amor. O sujeito deseja, mas teme desejar. Ama, mas receia ser engolido por esse amor. Ao mesmo tempo que idealiza o outro, tenta controlá-lo, seja por rituais, pensamentos repetitivos, ações compulsivas ou esquemas de vigilância simbólica.
Tudo isso tem uma função: manter o desejo em funcionamento, mas a uma distância segura. É como se dissesse: “ Te quero. Mas se você vier perto demais, posso te destruir ou desaparecer.” No fundo, há um medo profundo da entrega. Um medo do descontrole e da perda. E, muitas vezes, um desejo inconsciente de que a perda aconteça para que se possa manter o sofrimento sob controle, como quem escolhe sangrar para não ser ferido de surpresa. É uma estrutura onde o pensamento não para. Onde tudo é analisado, questionado, ensaiado. Onde a ação direta é adiada, substituída por ruminações mentais, indecisões e estratégias de contenção. Na clínica, o obsessivo costuma estar preso em círculos, girando em torno da culpa, da dúvida, da angústia. E organiza sua vida como quem tenta evitar um colapso interno que sente ser iminente.
No caso de Fukase, isso se manifesta de forma evidente: ele repete imagens, gestos, lugares, enquadramentos. É a repetição como defesa. É a estética como sintoma. É o amor como risco e como ruína.
Na obra de Fukase, não vejo apenas um fotógrafo genial. Ali está um homem à deriva, tentando organizar o próprio colapso através da lente. A série Yōko é, para mim, um dos retratos mais intensos de uma neurose obsessiva transformada em imagens. O que está ali não é só um registro de momentos íntimos, é um ritual. Um modo de manter viva a presença de alguém que, aos poucos, já estava indo embora.
As imagens de Yōko são cotidianas, espontâneas, quase banais. Mas é justamente aí que mora sua potência simbólica. A repetição diária e persistente, transforma o gesto amoroso em compulsão. Fukase não clicava apenas por afeto. Clicava para não perder, como quem tenta congelar o tempo; fotografa para adiar o luto. E o que mais me chama atenção é a ambivalência: há ternura, sim. Mas há também controle, posse e exaustão. O olhar que ele lança sobre ela é, ao mesmo tempo, admirado e aprisionador. Como se ela fosse o único eixo possível da existência dele. Por isso mesmo, precisasse ser contida, fixada, mantida sob vigilância pela lente.
Yōko percebeu isso. E disse, num depoimento brutal e honesto:
“ Posar para ele era como ser comida viva por alguém. Mas eu gostava.
Isso me fazia sentir viva também.”
Essa frase diz o que muitas vezes não conseguimos nomear: que há relações em que amor e destruição caminham juntos. Que há lugares onde ser visto é também ser consumido. Um fascínio em ser o centro do mundo de alguém, mesmo quando isso dói. Na lógica da neurose obsessiva, o outro vira objeto totalizante. O sujeito deseja, idealiza e tenta controlar ao mesmo tempo em que teme perder ou, secretamente, deseja destruir aquilo que não pode possuir por inteiro. É um amor que sufoca, porque nasce do medo. E é um medo que paralisa, porque é alimentado pelo amor. Fukase não apenas amava Yōko. Ele precisava dela para existir. E quando ela se vai, ele perde o objeto, e com ele, perde também a referência de si.
Karasu é a continuidade da neurose, em outro idioma visual. São os mesmos gestos, os mesmos rituais, agora dirigidos a figuras escuras, errantes, inquietas. Eles representam o que se foi e o que não volta mais. A fotografia, para Fukase, não era apenas arte. Era defesa. Era uma forma de organizar o caos, de adiar o colapso. Mas, como toda defesa psíquica, ela tem seu limite. Um dia, ela falha.
Tragicamente, a carreira de Masahisa Fukase foi interrompida em 1992, quando ele sofreu uma grave lesão cerebral após cair das escadas em um bar em Tóquio. Permaneceu em coma até sua morte, em junho de 2012. Apesar do fim fatídico, sua influência na fotografia permanece significativa. Seu trabalho continua a inspirar e desafiar fotógrafos e artistas ao redor do mundo. As fotografias de Fukase são testemunhos de sua capacidade de transmitir verdades emocionais profundas através da lente. Sua exploração de temas como solidão, perda e conexão humana ressoa de forma universal, tornando sua obra atemporal.
Masahisa Fukase foi mais que um fotógrafo, foi um poeta visual, capturando as complexidades da experiência humana com sensibilidade e perspicácia incomparáveis. Seu legado vive através de suas imagens assustadoras e belas, que continuam a falar sobre o poder da fotografia como forma de arte. Através de sua lente, Fukase deixou um legado duradouro que será lembrado e celebrado por gerações.
Fukase não é um “paciente”, mas sua produção nos permite ver como a estrutura obsessiva pode se manifestar de forma sutil, confusa, criativa, comovente e trágica. Sua fotografia seria, nesse sentido, uma forma de sintoma sublimado: uma defesa contra o abandono, a morte e a angústia de existir.