Estamos perdendo a coragem de não saber?

Estamos perdendo a coragem de não saber?

Pensar com profundidade parece ter se tornado um esforço desnecessário. As pessoas deslizam por conteúdos, consomem ideias em pílulas, formam opiniões em segundos. A pressa virou critério. A dúvida, um ruído incômodo e a complexidade, algo a ser evitado.

Há uma dificuldade crescente de sustentar o silêncio interno necessário para refletir. Pouca disposição para habitar perguntas sem respostas imediatas. A ansiedade por clareza substituiu a tolerância à ambiguidade. Queremos tudo pronto e digerido. O conteúdo precisa ser fácil de entender, rápido de consumir, direto ao ponto, ou simplesmente não serve. Essa aversão ao aprofundamento não é apenas um traço cultural: é uma reação psíquica ao desconforto de pensar e sentir demais, de não ter certezas. É como se refletir fosse perigoso. Como se pensar com mais camadas pudesse nos paralisar ou nos expor.

Nesse cenário, não há escuta, os diálogos perdem espaço e as relações se esvaziam. A arte, a filosofia e a literatura, que antes acolhiam a complexidade da experiência humana vão sendo marginalizados em nome da objetividade e da utilidade imediata. A boa vida, não entrega respostas prontas. Ela exige que a gente pare, sinta e habite um espaço de incerteza. E isso, num tempo que idolatra o instantâneo, pode soar desconfortável. Mas talvez seja justamente esse desconforto que nos devolva alguma inteireza. Algum senso de humanidade.

Mas o que está por trás dessa impaciência com o pensamento mais demorado? O que perdemos quando abrimos mão da reflexão em troca de velocidade?

É aí que entra um fenômeno sutil, mas cada vez mais visível: a complexofobia. Um tipo de rejeição imediata a tudo que exige tempo, elaboração, esforço interpretativo ou convivência com a ambiguidade. Ela se manifesta na dificuldade de sustentar leituras longas, na impaciência com uma obra que não se revela de imediato, na recusa ao que exige nuances. A complexofobia é uma resposta emocional e cognitiva a um cérebro sobrecarregado.

Esse padrão se espalha por várias áreas da vida. No campo cultural e educacional, ele aparece como uma busca ansiosa por respostas prontas, soluções e fórmulas rápidas, mesmo para questões que pedem reflexão. Na política e nas redes sociais, se traduz em resistência a discursos mais densos ou elaborados, abrindo espaço para narrativas maniqueístas e simplistas. No cotidiano, se revela nas pequenas impaciências, como o incômodo com quem fala demais e a recusa a escutar algo que desafia e exige atenção plena.
Esse fenômeno se conecta com o anti-intelectualismo, com a sobrecarga cognitiva de um mundo saturado de estímulos e com o efeito Dunning-Kruger, em que pessoas com menos repertório tendem a rejeitar o que não compreendem, superestimando sua própria compreensão. A complexofobia é um reflexo da subjetividade que perdeu a capacidade de lidar com o ambíguo, o denso, o inconcluso.

Na clínica, ela se revela de forma ainda mais clara. Frases como “vamos direto ao ponto”, “não precisa complicar”, “não quero pensar nisso agora” aparecem com frequência. À primeira vista, parecem sinais de objetividade. Mas muitas vezes, são defesas sofisticadas contra o contato com o indizível, com aquilo que ainda não tem nome. O sujeito foge do que o atravessa, do que escapa ao controle e exige convivência com a dúvida. A complexofobia, nesse sentido, é uma forma contemporânea de evitação. Uma tentativa de manter tudo na superfície, mesmo que isso custe profundidade, elaboração e transformação.

Estamos cercados por informações, mas cada vez mais carentes de interpretação. O excesso de dados e estímulos empacotados em pílulas visuais, resumos e frases de efeito, não necessariamente nos torna mais conscientes, mas sim mais anestesiados. A simplificação constante promove uma forma de dessubjetivação, em que o sujeito não sustenta mais a travessia pelo simbólico. O pensamento complexo é aquele que une sem confundir, e distingue sem separar. Uma capacidade que estamos perdendo, não por ignorância, mas por esgotamento psíquico e cultural. 

O avanço dos algoritmos reforça esse quadro: tudo o que nos é apresentado já vem adaptado ao nosso padrão de consumo, pronto para ser entendido sem fricção. Essa lógica da simplificação programada reforça a aversão à complexidade, criando um ciclo vicioso: quanto mais acostumados ao fácil, mais intolerantes ao difícil nos tornamos. E, com isso, vamos perdendo a musculatura simbólica que sustenta o pensar, o sentir e o agir de forma integrada.

A função da terapia, e particularmente de abordagens comportamentais, é justamente a de reintroduzir complexidade na vida psíquica. Não como um fardo, mas como possibilidade de elaboração. A escuta clínica não é uma busca por respostas prontas, mas um espaço para sustentar perguntas legítimas. Quando o terapeuta acolhe o impasse, o paradoxo e a contradição do sujeito, ele está fazendo um gesto profundamente contracultural: está dizendo que nem tudo precisa ser resolvido, que algumas dores precisam apenas ser ouvidas. E que, paradoxalmente, é dessa escuta que nasce a transformação.

Em termos simbólicos, poderíamos dizer que a complexofobia é uma nova forma de defesa. Um mecanismo que protege o eu do contato com o contraditório e o trágico. Mas como todo mecanismo de defesa, ela cobra um preço: o empobrecimento da experiência humana.

Na psicanálise, a complexofobia pode ser compreendida como uma defesa contra a angústia que a complexidade psíquica evoca. A mente humana tende à economia: sempre busca o menor gasto de energia possível para manter o equilíbrio. Diante da multiplicidade de sentidos, ambivalências, contradições que compõem a experiência humana, o sujeito pode entrar em contato com angústias primitivas, como a de desintegração, de não saber, ou de não ter controle. Essa aversão à complexidade pode ser vista como uma recusa inconsciente de reconhecer que sentimentos opostos, ideias contraditórias ou realidades simultâneas coexistem no psiquismo. Em vez disso, o sujeito busca explicações binárias e um mundo “decifrável”, ainda que ilusório, para não tocar o abismo do desejo e da falta.

Sob a perspectiva da Terapia Cognitivo-Comportamental, a complexofobia pode ser compreendida como uma forma de evitação experiencial cognitiva. Diante de situações que exigem esforço mental, pensamento crítico ou tolerância à incerteza, o indivíduo tende a experimentar desconfortos como ansiedade, confusão ou sensação de insuficiência intelectual. Para evitar esse mal-estar, recorre a estratégias cognitivas simplificadoras, como o raciocínio dicotômico (tudo ou nada), a rotulação simplista, a inferência arbitrária e a desvalorização do abstrato ou do intelectual. Nesse contexto, a complexofobia se configura como uma resposta condicionada à dor cognitiva, mantida por reforço negativo: ao evitar o esforço de pensar profundamente, o sujeito reduz temporariamente seu desconforto, o que reforça e perpetua o padrão de fuga da complexidade.

Mas o que exatamente nos impede de enfrentar a dúvida, sustentar o desconforto e nos empenhar na reflexão? O que o medo da incerteza revela sobre nossa relação com o desconhecido, com o tempo que a elaboração exige e com o risco de não ter respostas prontas?

Partindo da premissa de que a incerteza é inevitável em um mundo em constante transformação, defendo uma mudança de perspectiva profunda: em vez de temer a incerteza, devemos aprender a acolhê-la como parte vital da vida criativa, emocional e profissional. A incerteza não é um obstáculo, mas um terreno fértil para inovação, crescimento e realização pessoal. Introduzir o conceito de capacidade de lidar com a incerteza, uma habilidade que pode, e deve, ser cultivada. Na prática clínica, é comum observar que a incerteza foi tratada como uma falha no caminho. Algo a ser eliminado antes de qualquer movimento legítimo. Como se só fosse possível agir quando todas as respostas estivessem claras, os riscos sob controle e o futuro garantido.

Com o tempo, no entanto, torna-se possível compreender que a incerteza não é um obstáculo. É o próprio terreno da criação. O que falta, na maioria das vezes, não é segurança, mas estrutura interna para atravessar o desconhecido sem paralisar. Reformular a percepção diante do incerto é um passo essencial: deixar de vê-lo como ameaça e começar a reconhecê-lo como um campo fértil de possibilidades. Muitas vezes, as oportunidades estão próximas, mas permanecem invisíveis, simplesmente porque não há presença suficiente para notá-las. Preparar-se, então, vai além de planejar. É criar condições emocionais, vínculos de apoio, espaços flexíveis. Agir, mesmo sem garantias, exige disposição e coragem para errar. E o erro, quando reconhecido com honestidade, não enfraquece. Fortalece o processo de aprendizagem. Sustentar esse percurso, sobretudo, requer práticas consistentes de cuidado com as emoções, cultivo de sentido e conexão com aquilo que realmente importa.

A incerteza não precisa ser vencida. Ela precisa ser habitada.

A complexofobia não é apenas um fenômeno cultural, é um sintoma hipermoderno. E como todo sintoma, pede escuta. Talvez o convite mais urgente hoje seja este: desacelerar o entendimento para reencontrar o sentido. Nutrir-se de obras que não se esgotam em um olhar, cultivar relações que resistam à simplificação, sustentar a dor sem transformá-la logo em solução.

A complexidade, afinal, é o que nos torna humanos.

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