A dieta que corrói a mente.
Você desliza por conteúdos o dia inteiro, mas no fim sente que pensa menos, cria menos, foca menos. Esse esvaziamento não surge do nada: é fruto de uma dieta mental feita de estímulos curtos, sem estrutura para aprendizado real, marcada pelo consumo passivo e sem pausas para reflexão. O efeito imediato é uma mente inquieta, superficial e ansiosa; o efeito a longo prazo é a corrosão da criatividade, do foco, da memória e da capacidade de sustentar ideias mais complexas ( veja meu artigo anterior sobre complexofobia ).
O curioso é que essa sensação não é exclusiva da nossa era digital. Em 1854, Henry David Thoreau já falava em “podridão cerebral” no clássico Walden. Retirado para uma cabana de madeira às margens do lago que dá nome ao livro, Thoreau buscava compreender o que se perde quando a vida é acelerada demais. Para ele, a sociedade já começava a banalizar o pensamento profundo, rejeitando ideias densas e abertas a múltiplas interpretações em favor daquelas fáceis, lineares e imediatamente digeríveis. O termo brain rot, usado para descrever a deterioração intelectual provocada pelo estilo de vida, parecia então uma provocação isolada, mas se transformaria em diagnóstico cultural nos séculos seguintes.
Hoje, esse diagnóstico encontra terreno fértil nas redes sociais. O termo ressurgiu e ganhou popularidade para descrever conteúdos banais e repetitivos, que circulam em massa no Instagram, TikTok e afins. É um ciclo dopaminérgico: cada estímulo rápido libera uma pequena recompensa, que logo se esgota, deixando um cansaço maior e uma necessidade imediata de buscar outro estímulo num vício que nunca se satisfaz. É uma retroalimentação que anestesia e gera dependência, corroendo lentamente a capacidade cognitiva.
Em média, usuários de internet com 16 anos ou mais passam mais de 33 horas por semana consumindo mídia online. Segundo o GWI (GlobalWebIndex), empresa global que pesquisa o comportamento digital, só nas redes sociais esse número chega a 18 horas e 41 minutos semanais, tempo gasto rolando feeds e assistindo a vídeos no YouTube, TikTok, Instagram e Facebook. Em um ano, são cerca de 2 meses inteiros vivendo apenas dentro das telas e mais de 1 mês só em redes sociais.
A “podridão cerebral” contemporânea não se limita ao excesso de informações; é também a incapacidade de metabolizá-las. Não é apenas o que se consome, mas como se consome. Sem tempo de digestão mental, as ideias não se enraízam. Ficam na superfície, como fragmentos que passam velozes pela mente e logo se dissipam. O cérebro se acostuma a pular de estímulo em estímulo, sem sustentar o silêncio necessário para que algo amadureça.
Base Neurológica da Deterioração Cognitiva por Vício
A deterioração cognitiva refere-se ao declínio da capacidade de executar funções como memória de trabalho, tomada de decisão, atenção e resolução de problemas. No contexto digital, um dos principais motores desse processo é a busca incessante por estimulação e recompensa.
O termo “deterioração cerebral” passou a ser usado não apenas para descrever o fenômeno, mas também para classificar o próprio conteúdo que o provoca. Assim, vídeos sexualmente explícitos, imagens rápidas e aversivas, ou até mesmo conteúdos triviais de consumo compulsivo, podem ser chamados de “deterioração cerebral” em si, e não apenas de “indutores de deterioração”. Essa lógica se sustenta porque tais estímulos produzem superestimulação sensorial, gerando sobrecarga cognitiva e, em consequência, um esgotamento psíquico que mina a capacidade de concentração e reflexão.
Do ponto de vista neurológico, o mecanismo central envolve os receptores dopaminérgicos, responsáveis pela antecipação de recompensa. A ativação contínua desses receptores leva ao acúmulo da proteína arrestina, que reduz sua atividade. Em termos simples: quanto mais dopamina liberada por estímulos rápidos, como nas redes sociais, mais dessensibilizados ficam os receptores e menos motivação sentimos para atividades que exigem esforço real. O resultado é um círculo vicioso: perde-se a motivação para tarefas cognitivamente desafiadoras, enquanto se fortalece o vício pelo estímulo fácil e imediato.
Evidências publicadas na World Psychiatry (2019) mostraram que altos níveis de uso da internet e multitarefa intensa estão associados à redução da massa cinzenta em regiões pré-frontais, áreas fundamentais para atenção, memória e autorregulação. Mais recentemente, o World Journal of Psychiatry (2023) analisou o uso problemático da internet (PIU) e de mídias sociais (PSMU), concluindo que esses hábitos também se associam a atividade anormal em circuitos de recompensa, bem como à ativação de regiões cerebrais ligadas à compulsão alimentar e à impulsividade.
O diagnóstico é claro: o uso excessivo da internet e das redes sociais não apenas altera fisicamente o funcionamento cerebral, mas também afeta o equilíbrio psíquico. Os efeitos imediatos podem parecer sutis, lapsos de memória e dificuldade de decisão logo após uma sessão intensa de redes, mas o efeito cumulativo é mais grave: ansiedade, estresse, depressão e sintomas compatíveis com o que alguns autores já chamam de “demência digital”.
Como revela a Frontiers in Psychology em um estudo de 2023, o consumo passivo e incessante de conteúdo trivial pode levar a uma verdadeira atrofia da neuroplasticidade. Traduzindo: o cérebro se torna preguiçoso. Em vez de fortalecer suas conexões neurais por meio de atividades exigentes, como aprender, criar e resolver problemas, ele enfraquece diante do excesso de rolagem sem esforço cognitivo.
O cérebro, assim como o corpo, não sobrevive apenas de fast food: precisa de água, gorduras boas e nutrientes sólidos para pensar com clareza. As redes sociais oferecem ao cérebro o equivalente a uma dieta rica em açúcar: prazer imediato, mas sem sustento, corroendo lentamente a saúde mental. Um terreno fértil para a proliferação de sintomas psíquicos que hoje já não podem mais ser tratados como metáforas, mas como um problema real de saúde mental e comportamental.
Reflexão Clínica
Por que nos entregamos tão facilmente a esse consumo incessante de estímulos? Em tempos hipermodernos, sustentar o vazio tornou-se quase insuportável. A frustração, que poderia abrir espaço para o pensamento, para a criação ou para o desejo, é imediatamente anestesiada por descargas de dopamina rápidas e superficiais. Em vez de elaborarmos a falta, a transformamos em compulsão. Assim, o empobrecimento cognitivo não é apenas efeito das telas sobre o cérebro, mas também a expressão de um mal-estar mais profundo: a incapacidade contemporânea de conviver com o silêncio, a espera e o não saber.
Na clínica, encontro cada vez mais histórias de uso contínuo de drogas. O que me interessa neste contexto, no entanto, é o que acontece antes delas: uma adolescência atravessada pelo consumo excessivo de redes sociais, que apodrece lentamente o cérebro, mina a capacidade cognitiva e interrompe o desenvolvimento do pensamento profundo. Quando a mente perde a força para sustentar raciocínios complexos, lidar com frustrações e construir objetivos de longo prazo, a realidade se torna insuportável. É nesse ponto que a maconha, o álcool e outras drogas surgem como anestesia: não apenas para aliviar a dor, mas para fugir da própria incapacidade de pensar. Um círculo vicioso se instala: primeiro o esvaziamento cognitivo, depois a fuga química, e por fim uma mente cada vez menos apta a enfrentar a vida real.
Sobrecarga Cognitiva e o Empobrecimento da Mente
A avalanche de informações que recebemos diariamente de notícias, entretenimento, atualizações incessantes de redes sociais e cursos online que impõe ao cérebro uma carga difícil de sustentar. Essa sobrecarga não é apenas de quantidade, mas também de forma: conteúdos apresentados de modo disperso, fragmentado e apelativo, esgotam a capacidade de foco e drenam energia mental. Jovens adultos expostos a longos períodos de engajamento digital apresentam queda na atenção, dificuldade em integrar novos conhecimentos e sinais de declínio cognitivo precoce.
Na teoria da carga cognitiva, distinguimos três tipos: a intrínseca ( ligada à complexidade natural do conteúdo ), a externa ( relativa à forma como a informação é apresentada ) e a pertinente ( o esforço para integrar o que se aprende a esquemas já existentes ). O problema do mundo digital é que a carga externa se sobrepõe de maneira tão ruidosa e opressiva que prejudica a capacidade do cérebro de lidar com as outras duas, o que resulta em fadiga mental, dispersão e menor profundidade de raciocínio.
Dois comportamentos contemporâneos exemplificam esse fenômeno. O primeiro é o doomscrolling, ou rolagem do apocalipse: o ato compulsivo de rolar feeds recheados de notícias negativas e conteúdos perturbadores. Embora dê a ilusão momentânea de estar “atualizado”, alimenta estados de ansiedade, hipervigilância e ruminação, além de expor as pessoas a altas doses de desinformação. O efeito é um cérebro preso em alerta constante, incapaz de desacelerar para atividades mais produtivas ou restauradoras.
O segundo é a rolagem zumbi: navegar sem rumo pelas redes, sem objetivo ou intencionalidade, em um estado próximo à dissociação. Aqui não há necessariamente sofrimento imediato, mas há esgotamento cognitivo silencioso, redução do foco sustentado e uma sensação crescente de desconexão da realidade. Trata-se de uma busca compulsiva por novidades que satisfaz momentaneamente, mas enfraquece sua capacidade de engajamento profundo e gera sentimentos de solidão e vazio.
Doomscrolling e Brain Rot na perspectiva da Terapia Cognitivo-Comportamental
Embora não sejam termos médicos, doomscrolling e brain rot descrevem fenômenos reais do uso excessivo de conteúdo digital. O doomscrolling ganhou força na pandemia, quando a rolagem incessante de notícias negativas parecia oferecer controle e informação, mas acabou gerando efeitos psicológicos adversos, como ansiedade, hipervigilância e ruminação. Já o brain rot refere-se ao declínio das funções cognitivas, como atenção, memória e pensamento crítico, quando o cérebro é constantemente treinado a responder a estímulos rápidos e superficiais.
Na perspectiva da TCC, esses fenômenos são mantidos por ciclos cognitivos e comportamentais de reforço. A busca compulsiva por novos conteúdos é guiada pela lógica da dopamina: cada estímulo gera uma pequena recompensa imediata, que reforça o comportamento de rolar a tela. Com o tempo, esse padrão fortalece crenças disfuncionais como “preciso estar sempre atualizado” ou “se eu parar, vou perder algo importante”. O efeito prático é a fragmentação da atenção e a redução da tolerância a tarefas que exigem esforço prolongado. Em paralelo, a exposição constante a informações negativas aumenta vieses cognitivos, como a tendência a superestimar riscos e a interpretar o futuro de forma pessimista, mantendo altos níveis de ansiedade.
As consequências são visíveis: dificuldade em sustentar o foco, diminuição da capacidade crítica, maior vulnerabilidade à desinformação e um estado emocional marcado por estresse, fadiga e isolamento. Mesmo quando há hiperconexão, a qualidade dos vínculos é superficial, alimentando a sensação de solidão. O corpo também responde a esse ciclo: distúrbios do sono, dores de cabeça, alterações no apetite e sintomas físicos associados à ansiedade tornam-se cada vez mais frequentes.
Intervir nesse processo exige reestruturação cognitiva e mudança de hábitos. Técnicas da TCC podem ajudar na psicoeducação sobre dopamina e reforço imediato, na identificação de crenças distorcidas ligadas ao consumo de mídias e no treino de habilidades para lidar com o desconforto do “não saber”. Estratégias como planejamento de tempo de tela, monitoramento de gatilhos, exercícios de atenção plena e ativação comportamental favorecem a retomada da motivação para atividades que exigem foco, criatividade e envolvimento real. A chamada desintoxicação de dopamina funciona aqui como um treino para restaurar o equilíbrio dos circuitos de recompensa, permitindo que atividades cognitivamente mais desafiadoras voltem a ser vividas como prazerosas e significativas.
Em síntese, tanto o doomscrolling quanto o brain rot são expressões de padrões cognitivos e comportamentais automáticos, mantidos pelo reforço imediato e pela evitação do desconforto. A saída passa por recuperar a capacidade de tolerar a frustração, sustentar o vazio e reintroduzir experiências que alimentem não apenas o prazer imediato, mas também o sentido de longo prazo.
A solução está em retomar a profundidade: conteúdos longos que exigem presença e provocam reflexão, como livros densos, filmes complexos, podcasts profundos e artigos que não cabem em um carrossel. Para reiniciar sua mente, cultive novos hábitos: leia um livro desafiador por mês, mergulhe em um artigo longo por semana, assista a um filme que não entregue tudo de bandeja. Faça isso com presença, anote o que te provoca, compartilhe ideias com alguém e volte às anotações dias depois.
Aos poucos, você vai perceber menos ansiedade, mais clareza, menos repetição de ideias alheias e mais pensamento original. Menos ruído, mais foco. Menos dispersão, mais profundidade. Não se trata apenas de recuperar o cérebro, mas de recuperar a si mesmo.